Performance duracional de Santiago Cao.
Acionada ininterruptamente do 26 a 28 de novembro de 2015, na 10ª Bienal do Mercosul.
Convidado a participar como artista representante da Argentina. Porto Alegre, Brasil.
Produção Textual para a 10a Bienal de Artes Visuais do Mercosul.
Registros fotográficos por Marcelo Armani e Tárlis Schneider.
Duração: 3 dias
(Para ver os registros fotográficos dessa Performance, fazer click na foto) Registro Narrativo: (A palavra “Feria”, em espanhol, se traduz para o português por “Feira”. Neste sentido, o jogo de palavras “(peri)Feria” acontece por meio do duplo sentido de “Feiras de Arte” e das “periferias” associadas tanto às margens quanto às pessoas marginalizadas nas cidades). Quando fui convidado para participar da 10ª Bienal do Mercosul, pensei se por acaso fosse possível gerar uma pergunta de dentro mesmo desse dispositivo da Arte que questione alguns dos conceitos mais falados nos últimos tempos entre muitos dos artistas que conheço: o público. Mas queria não só provocar no sentido da procura de novos públicos, mas também provocar a respeito de que(m) pode ser chamado de público e quem ainda – sendo mantido nas margens – continua permanecendo por fora do termo tanto na hora de se debater quanto de agir com e na Arte. Com este propósito, enviei para a Bienal um projeto-mascarado, uma fachada que pudesse ser aceita pelos Curadores, ao tempo que, durante os dias em que durasse a Performance, tentaria de fazer outra coisa diferente. Só uma pessoa que trabalhava dentro de Bienal saberia o que ia me propor fazer. Uma pessoa que se tornaria, de maneira simultânea, em parceira e produtora da Performance. Propus a ela participar e aceitou. Só pedi para segurar o segredo, não falar para ninguém dentro da Bienal, pois queria ativar – através desta Instituição da Arte – o dispositivo excludente do Público na mais ampla e normatizadora cotidianidade possível. Dispositivo que não opera só nestes espaços da Arte e que abrange a maioria das instituições públicas. O texto do projeto apresentado oficialmente para a Bienal foi o seguinte: “Baseando-se no Corpo como suporte de obra, mas também como suporte de experiência coletiva, a Performance “Márgenes e (peri)Ferias” se propõe refletir a respeito dos quatro vetores da 10ª Bienal do Mercosul a serem tomados como referência teórica e conceitual do primeiro Campo Conceitual “Jornada da Adversidade”: Precariedade, Dificuldade, Resistência e Generosidade Criativa. Cabem as perguntas, a respeito destes vetores: qual o sentido de inclusão proposto neles, e quem são levados em consideração na hora de pensar nestes conceitos de Precariedade, Dificuldade, Resistência e Generosidade Criativa? E ainda mais, quem são os que continuam sem serem contemplados nestes pensamentos dentro do campo das Artes? É possível pensar em margens e periferias sem pensar nas resistências cotidianas do Corpo a Corpo e nas associações, parcerias e na potência criativa dos afetos? Nestas, nossas sociedades latino-americanas, cada vez mais atravessadas pelo medo ao outro, a alteridade vai se tornando um conceito cada vez mais abstrato. Como in-corporar a questão do outro visto como ameaçante dos valores sociais hegemônicos e dos pertences materiais num contexto de Bienal que pretende refletir a respeito da experiência artística e dos processos de urbanização tomando a cidade de Porto Alegre como referência e ponto de partida? Como in-corporar esses outros que habitam essas margens sem poder habitar as (peri)Feiras de Arte? Numa deriva de três dias, me predisponho a me encontrar com as pessoas que o percurso nas “margens” me apresentar. Três dias para me contaminar de experiências que possam brindar as ferramentas necessárias para in-corporar histórias e afetos que possam ser levados para dentro do espaço institucional da Bienal num formato de Performance. Três dias na procura de criar uma ponte relacional entre o “dentro” e o “fora” onde as Resistências parecem se tornar uma adversidade em comum. Itinerário proposto para a ação: Começo da deriva na quinta-feira 26/11, continuando sem interrupções até apresentação da Performance dentro do MARGS (Museu de Arte de Rio Grande do Sul) no dia sábado 28/11 a partir das 15 horas.” Mas, a proposta que pretendia fazer ia ser outra. Vestindo roupas velhas e rasgadas, e com meus pés descalços, me propunha habitar a rua, in-corporá-la durante três dias consecutivos, numa deriva sem rumo nas margens e proximidades dos prédios que expunham as obras da Bienal. Dormindo onde pudesse e comendo o que as pessoas me dessem, tentaria não só vestir o figurino de morador de rua, senão também de afetar meu corpo através dessa experiência. Procuraria – através do cansaço e da fome – que outros gestos aparecessem no meu corpo, para, deste modo, afetar nos seus saberes os outros corpos que no dia marcado para eu apresentar a Performance no MARGS (Museu de Arte de Rio Grande do Sul), estariam trabalhando como seguranças do Museu. Tentaria ingressar sem me identificar como Artista da Bienal, procurando habitar outra corporalidade. In-corporar uma imagem mais próxima daqueles corpos que dormem nas ruas e na praça em frente do Museu do que os habituais corpos que transitam diariamente os espaços da Arte. Que poderia acontecer, num prédio público, quando um desses “outros” corpos tentasse ingressar? O que poderia evidenciar, enquanto artista, se não me apresentasse como tal? Conseguiria ingressar na hora marcada para fazer uma Performance dentro? Ou seria barrado na porta, impedido de entrar, gerando deste modo uma ausência diante do compromisso marcado? Quantas outras tantas ausências são diariamente geradas, quantas personas são mantidas nas margens dos prédios públicos por não se encaixar nos modos “corretos” de se vestir e viver nas cidades? Se o corpo do Artista pode estar presente... o que pode um corpo quando pode-não? Na quinta-feira 26/11, antes de sair do hotel para habitar a rua e me afetar dela, dei uma olhada no site da Bienal para poder postar e divulgar as informações a respeito do dia e horário no qual supostamente eu ia apresentar uma Performance no MARGS. E me deparei, dentre do publicado com este trecho: "A proposta do performer é incorporar, durante três dias, a rotina e as histórias de pessoas que estão à margem da sociedade em geral, como moradores de rua, por exemplo, no entorno dos espaços expositivos da Praça da Alfândega, para, no sábado, levar essas vivências para as exposições da Bienal, atuando, ele próprio, como alguém que esteve excluído, ou que viveu na rua". A única pessoa dentro da Bienal que sabia o que me propunha fazer tinha falado para alguém mais e agora a proposta ficava sendo não só do conhecimento da Bienal quanto também do conhecimento público! Como fazer para não ser capturado pelo dispositivo de espetacularização agora que pessoas estariam me esperando chegar “atuando como alguém que esteve excluído, ou que viveu na rua”? Resolvi continuar com a proposta. Ir para a rua, habitá-la e me deixar contaminar por ela, na esperança de – no decorrer dos dias – pensar algumas possíveis táticas que ainda me permitiram provocar alguma situação não espetacularizável ao tentar ingressar ao Museu. Vesti as roupas e pendurei do pescoço uma caneta espiã. Uma pequena câmera filmadora inserida numa caneta que cobri com pedaços de tecido branco deixando exposto só a pequena lente e gerando uma aparência similar a um estranho e cumprido pendente. Pretendia filmar com ela a tentativa de ingressar no Museu para ter um registro do que fosse acontecer. Levei comigo uma sacola de plástico verde, carregando nela uma manta, uma garrafinha com água e uns chinelos (caso ferisse meus pés e precisasse deles). Levei também um telefone celular que a produtora tinha me dado para podermos nos comunicar através de mensagens de texto e marcarmos encontros se fosse necessário fazê-lo. Escolhi não levar dinheiro nem documentos, na tentativa de não cair em resoluções fáceis se algum problema acontecesse com a polícia ou se a fome batesse com força. Essa primeira noite, ao não saber como e onde dormir, fiquei caminhando grande parte dela. Tentava observar como outras pessoas faziam para dormir; quais os gestos corporais delas, na tentativa de poder imitá-las achando que desse modo poderia passar despercebido na noite. Tinha medo de alguém suspeitar que não fosse um morador de rua e me agredir. Ou, ao invés, ser agredido pela polícia por me acharem um deles, pois fiquei sabendo que isso estava acontecendo com muita frequência. Depois de caminhar à deriva durante algumas horas, e vendo que a chuva estava chegando, escolhi dormir numa calçada de uma avenida do Centro Histórico, debaixo de um beiral de um prédio de escritórios. Joguei a manta no chão, deitei nela, me envolvendo e cobrindo para me proteger do frio e coloquei a sacola embaixo a cabeça usando-a como travesseiro. Estava frio, cada barulho que ouvia me fazia acordar, até que finalmente consegui dormir. Só voltei a abrir os olhos quando abriram as portas do prédio e as pessoas começaram a chegar. Recolhi as coisas e fui até a esquina. Sentei no chão e fiquei olhando como as pessoas passavam na rua. Uma moça de um prédio de oficinas que estava do outro lado da rua chegou para mim e me diz: - O senhor se importa se lhe dou um pão de queijo? Recebi o pão e ela voltou para o prédio. Comi com vontade e decidi começar a caminhar. Ainda tinha que resolver o que faria no dia seguinte quando tivera que tentar ingressar às 15h no Museu. Caminhei um pouco até perceber que estava indo em direção à Usina do Gasômetro, um dos prédios onde funcionava a Bienal. A produtora tinha me dito que dos prédios utilizados, esse era o mais aberto à população em geral e achava que lá até morador de rua podia entrar. Decidi testar o dito por ela. Meu corpo estava estranho. O cabelo sobre o rosto me produzia um peso no caminhar. Difícil explicar, mas aquela sensação me fazia caminhar devagar. Não tinha presa nenhuma. Demorei muito para chegar. Ainda era cedo e poucas pessoas entravam na Usina. Apenas ingressei, um funcionário de segurança chegou até mim e muito amavelmente me indicou que sem calçado não poderia ingressar e que teria que me retirar. Sem falar nada, coçando na cabeça, dei meia volta e sai daquele lugar. Foi nesse momento que entendi o que ia fazer. Se a Bienal esperava eu chegar, ia ser só no dia seguinte. Teria o dia todo para tentar ingressar em todos os prédios que ocupava a Bienal e filmar com a caneta espiã o que acontecesse. Liguei a câmera e voltei para a Usina. Entrei caminhando devagar para dar tempo dos funcionários me verem e agirem. Nesse momento um grupo de jovens ingressou também. Só quando eles ficaram longe de mim e ninguém podia ver onde eu estava, foi que os funcionários se aproximaram indicando novamente para eu me retirar. Mas, houve muita gentileza nas palavras de um deles. - Vai para fora. Está sem calçado – Disse para mim. Optei por não responder e comecei a coçar a cabeça olhando para outro lado. - Está com fome? Quer alguma coisa para comer? Nós não podemos te deixar entrar, viu? Está sem calçado. Dei meia volta e comecei a sair devagar. Eles ficaram dentro. Não houve necessidade de me acompanharem até a porta. Entendi que a falta de calçado ia ser um recurso a meu favor na hora de provocar alguma situação ao entrar nos prédios que recebiam as mostras da Bienal. Mas, também fui me deparando que essa falta de calçado afetava às pessoas que me encontravam caminhando nas ruas. Deparei-me no decorrer do dia que todas as demais pessoas que vi que estavam em situação de rua, tinham os pés calçados. Algo nos meus pés expostos estava marcando uma diferença e essa diferença, longe de afastar às pessoas, as aproximava. Ao passar por perto daquela avenida onde dormi, um homem com terno e gravata chegou para mim e me ofereceu uma sacola com pão. Continuei caminhando em direção à Praça da Alfândega, pois em frente a ela e um do lado do outro, se encontravam três imensos prédios que também expunham obras da Bienal: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), o Memorial do Rio Grande do Sul, e o Santander Cultural. Ao chegar à praça, um homem que estava sentado num banco comendo e bebendo me viu e na hora chegou até mim e me ofereceu seu refrigerante e uns biscoitos salgados. Sem pedir nada para ninguém, estava recebendo. E não foram essas as únicas pessoas que no decorrer do dia me ofereceram comida. Fiquei um tempo sentado num banco da praça, olhando de frente para o MARGS. Uma pequena porta de entrada contrastava com a grande arquitetura gerando uma sensação de pouca abertura para o exterior. E o fato da porta permanecer o tempo todo fechada, se abrindo só quando alguém entrava ou saia, fortalecia esta impressão. Liguei novamente a câmera da caneta espiã e tentei ingressar no Museu. Só foi empurrar a porta e um funcionário de segurança apareceu frente de mim. Olhando em direção dos meus pés disse: - Sim? Tentando olhar para meus olhos através do meu cabelo e sem mover de lá, nem me deixando lugar para passar, voltou a perguntar. - Sim? Mas como permaneci em silêncio olhando para o chão e coçando a cabeça com meu cabelo sobre o rosto, optou por se afastar da porta e me deixou entrar. Só uns metros. A porta se fechou detrás de mim. Avancei mais um pouco e quando estava por pisar o primeiro degrau da escadaria que levava às salas de exposições, este homem se colocou na minha frente e voltou a perguntar: - Sim? Você quer falar com alguém? – mas, como eu não disse nada, perguntou novamente – Você quer falar com alguém? Quer usar o banheiro? Respondi negando com a cabeça. - Então, senão, tem que sair, tá? Ficar na praça, ali – disse ele muito amavelmente. Olhei para a escadaria, mas ele antecipou meu gesto e diz: - O senhor tem que sentar na pracinha, aguardar ali, tá? Tem que aguardar ali fora – E abriu a porta para eu sair ao tempo que outra pessoa, visitante do museu, ingressava. Caminhei devagar pela praça em direção ao Santander Cultural. Na frente dele tinha uma instalação de natal com uma grande árvore de plástico decorada com enfeites vermelhos. No chão, muitas caixas simulando presentes. Do lado da imensa porta de ingresso, um cartaz da Bienal indicando “Mensagens de uma nova América”. Uma grande escadaria levava para outra grande escadaria. Nela, estavam conversando entre eles vários dos mediadores que trabalham na Bienal recebendo às pessoas e guiando-as pela mostra. Ninguém deles veio me receber. Quem chegou até mim foi um funcionário de segurança que me perguntou: - Bom dia, posso ajudar? Olhei para o chão, coçando a cabeça. Fiz um gesto de continuar avançando. Ele não me o impediu e ficou subindo detrás de mim, bem perto, e falando com alguém através de um aparelho de comunicação que tinha inserido no seu ouvido. - Ele está subindo – Informou para alguém que não estava ali conosco– continua subindo. Ao chegar ao topo da escadaria, se colocou na minha frente e voltou a perguntar se podia me ajudar. Não respondi e comecei a olhar para o chão coçando a cabeça. - Não é permitido, não pode entrar no estabelecimento – disse ele. Olhei em direção para a porta de ingresso do salão principal, mas ele me indicou a outra porta, a de saída, me dizendo “tem que ser por lá, sair pela porta”. E colocando seu braço suavemente nas minhas costas, voltou a insistir dizendo “sair pela porta” ao tempo que com seu corpo guiava o meu. Comecei a descer os degraus, e como aconteceu na subida, os mediadores continuaram conversando entre eles e recebendo as pessoas sem se aproximar de mim. Saindo de lá, fui em direção ao prédio do lado, o ultimo dos três prédios que ficavam de frente para a Praça da Alfândega: o Memorial do Rio Grande do Sul. Mesmo lugar ao qual, dois dias antes, tinha ingressado acompanhado de uma das produtoras para conversar com as pessoas encarregadas da imprensa da Bienal. Um prédio antigo com uma porta grande e aberta que dava para uma escadaria. Subindo se chegava a um balcão de recepção que ficava perto da porta de ingresso ao salão de exposições. Antes de chegar ao topo vi que nesse balcão havia uma mediadora. Ela também me viu e com pressa saiu de lá e ingressou no salão. Rapidamente veio ao meu encontro um funcionário de segurança. A mediadora ficou detrás dele. - Aqui você não vai entrar, amigão, por favor, por favor – disse para mim, estendendo o braço e colocando-o nas minhas costas ao tempo que me empurrando suavemente fazia meu corpo girar até orientá-lo em direção à saída. Voltei a girar no sentido contrário e em silêncio apontei com meu dedo indicador para um grande cartaz da Bienal que informava “Mensagens de uma nova América”, e escrito com letras menores o nome da exposição: “Biografia da vida urbana”. O funcionário bateu no meu peito com a sua mão aberta e me empurrando novamente, me levou até a escadaria. Comecei a descer e saí. Novamente na Praça da Alfândega, novamente “fora” da Bienal. Acostei-me num banco e dormi umas horas. Entendi que havia concluído a Performance pois a minha intenção não era falar das pessoas que moram em situação de rua senão poder ativar um dos dispositivos de exclusão, na tentativa de tensionar o conceito mesmo do “Público” numa arte que pretende se abrir a novos “públicos”. Mas, como acredito que um corpo afetado pode expressar outra coisa além do que pode um corpo vestido com um figurino, foi que decidi vivenciar mais um dia a rua. Desse modo, com o corpo afetado, no dia seguinte tentaria ingressar nos prédios da Bienal para – in-corporando essa experiência – poder afetar ao pessoal de segurança ativando neles o imaginário envolta do que pode e não pode fazer uma pessoa que mora em situação de rua. Procurei dentro da sacola o telefone e enviei uma mensagem para a produtora pedindo nos encontrar num ponto distante uns quarteirões daquela praça. Uma hora depois ela chegou. Falei que a Bienal tinha divulgado na internet através do seu site aquilo que supostamente só ela saberia e que por conta disso, tinha decidido mudar o plano de ação proposto inicialmente. Desculpou-se dizendo que lamentava o acontecido pois não imaginava que isso poderia ocorrer ao confiar o segredo para outra pessoa dentro da Bienal. Pedi para tirar algumas fotos para ter um registro fotográfico além do filmado com a caneta espiã. Narrei as diferentes situações geradas em cada uma das tentativas de ingressar naqueles quatro prédios. Mas também falei que queria ver o que aconteceria no dia seguinte às 15h, quando fosse o dia divulgado pela Bienal para “fazer” a minha Performance. Pensamos que seria uma boa ideia tentar ingressar no Museu novamente, mas com duas pessoas a mais registrando discretamente a ação. Ela do lado de fora e outra pessoa de dentro mesmo, localizada no topo da escadaria para garantir outros pontos de vista além do que a caneta espiã ofereceria. Foi assim que planejamos fazê-lo. E para evitar que a Bienal tornasse aquilo um espetáculo, faríamos a tentativa de ingresso ao museu um pouco antes da hora divulgada. E, caso eu fosse impedido de ingressar, sairia e caminharia até o Memorial que fica ao lado do Museu, tentando de ingressar e chegar à sala da imprensa para falar e narrar o acontecido nos dias anteriores. Mas, se também fosse barrado ao ingressar, aí entraria em jogo a produtora, indicando para o funcionário de segurança que eu era o Santiago Cao, artista convidado da Bienal fazendo uma Performance. Como iria reagir essa pessoa após ser informado? Deixar-me-ia ingressar – ainda estando sem calçado – por ter-me tornado artista para o seu campo de saberes? No decorrer do dia continuei caminhando numa deriva sem rumo fixo. A tentativa de afetar meu corpo estava dando certo pois me sentia estranho. O dia parecia eterno e o tempo todo me atravessava uma vontade de dormir. Comecei a sentir um pouco de febre. Caminhei até o terminal de ônibus Uruguai, próximo da Praça da Alfândega, e deitei no chão para dormir me cobrindo com a manta. Não sei quanto tempo passou, mas acordei com a chuva me molhando. Recolhi minhas coisas e enquanto as guardava na sacola, uma senhora chegou e me diz: - O senhor se importa? Tenho uns sanduíches para você comer. E estes sanduíches foram a minha janta e o café da manhã do dia seguinte. Novamente fiquei pensando a respeito dos meus pés descalços e como eles afetavam e geravam reações contrastantes. Por um lado, várias pessoas se aproximando para me dar alimento. Por outro, as reiteradas expulsões ao tentar ingressar nas mostras da Bienal que paradoxalmente foi batizada “Mensagens de uma nova América”. No dia seguinte caminhei por outros lugares que ainda não tinha percorrido. Parecia realmente ser outro dia. As sensações eram outras. Tudo parecia mais hostil em comparação à generosidade das pessoas do dia anterior. Pelos menos três vezes me gritaram insultos de dentro de carros passando. Acabei me topando com uma feira de verduras. Fiquei de pé, por perto de um dos postos de frutas vendo se alguém me oferecia algo para comer, mas nada aconteceu. Após de ficar um tempo só coçando a cabeça, resolvi começar a caminhar por dentro da feirinha vendo se alguém se sentia provocado e me convidava alguma coisa para eu comer. Só ganhei piadas a respeito da minha imagem. “e aí, homem das cavernas” gritou um dos feirantes rindo junto com outro. Como não respondi nem olhei para ele, voltou a me chamar de “homem das cavernas”. Outro feirante falou para ele: “deixe-o em paz. Ninguém esta a salvo de acabar assim!”. Caminhei até a Praça da Alfândega e deitei num banco. Dormi. Ainda tinha algumas horas para descansar antes da hora marcada. Acordei, mas continuei deitado olhando as pessoas passarem. Comecei a perceber a grande quantidade de pessoas que estão morando na rua. Reconheci muitas delas pelo gesto de carregar a sacola. Ainda que alguns deles estivessem bem vestidos, com o cabelo penteado e limpo, possuíam algo em comum naquele jeito de segurá-la; indistintamente se a sacola fosse nova ou rasgada, um gesto comum parecia indicar que essa mão a carregava e não só a transportava. E naquela manhã vi tantas pessoas repetindo aquele gesto que fiquei impressionado, me perguntando como foi possível nos dias anteriores ter olhado só para o evidente, o explícito? Abri minha sacola e olhei a hora no celular. 14:30h. Tínhamos menos de 30 minutos para tentar ingressar se queríamos fazê-lo antes da hora divulgada pela Bienal. Vi a minha parceira chegar e se encontrar com a pessoa que ia fazer o registro de dentro do Museu. Esperei ele ingressar. Sentei-me num banco próximo da entrada. Ela chegou e sentou-se num outro banco, também próximo. Apareceu um homem elegante, vestido de terno e gravata e saudou ela. Era o Cônsul da Argentina que tinha chegado para presenciar a Performance do artista Argentino. Olhou para mim, mas não imaginou que eu poderia ser aquele artista que a embaixada trouxe para representar ao país na Bienal. Escutei eles conversarem um pouco até que o Cônsul se despediu para poder ingressar no Museu e presenciar a Performance que aconteceria dentro, em alguma das salas de exposições. O telefone dela tocou. Olhou para mim. Procurei meu celular para saber a hora. Faltavam 5 minutos para as 15h. Caminhei devagar até a porta do Museu, coçando na cabeça. Uma mulher estava saindo quando tentei de ingressar. Ela me viu e deixou a porta aberta segurando-a para eu poder entrar. O funcionário de segurança detrás do balcão me viu e na hora veio até mim. Era outra pessoa. Não era aquele homem gentil do dia anterior que me indicara voltar à “pracinha” e ficar sentado lá, aguardando num banco. Não era o mesmo, nem teve a gentileza do seu colega. Chegou rapidamente até mim, bloqueando meu passo antes de poder me aproximar à escadaria e me dizendo: - Senhor, você não pode entrar. Não leva a mal, o senhor vai ter que sair. Não pode entrar aqui. Você vai ter que sair. Permaneci em silêncio, coçando a cabeça. Nesse momento, duas pessoas passaram do meu lado descendo as escadas rumo à saída. Ninguém as acompanhou até a porta. Mas o funcionário insistiu em me dizer: - O senhor vai ter que sair. Não pode ficar aqui – E pegando meu braço me levou para a porta, empurrando-me fora no mesmo instante em que outras duas pessoas ingressavam ao Museu. Já no exterior, dois fotógrafos da Bienal chegaram correndo e começaram a tirar fotos. Tinham chegado 5 minutos tarde. A “Performance” tinha começado 5 minutos antes das 15h. Segundo o combinado no encontro do dia anterior com a minha parceira, ao sair do Museu esperaria uns minutos e depois caminharia para o Memorial na tentativa de ingressar para chegar até a sala de imprensa para narrar o acontecido durante a Performance duracional e entregar para eles os registros filmados com a caneta espiã. Queria ver o que aconteceria com o funcionário de segurança quando me visse chegar novamente. Mais uma vez me impediria ingressar a esse prédio público por me achar um morador de rua? Mas, as coisas foram bem distintas do acontecido no dia anterior. Estando a caminho do Memorial, um dos mediadores do Museu correu até o prédio vizinho para avisar aos seus colegas dizendo: “o artista esta chegando!”. Quando cheguei à entrada, vi que detrás de mim tinha um fotógrafo tirando fotos. Um segundo fotógrafo também tirava fotos do alto da escadaria. Subi devagar, degrau por degrau, coçando a cabeça, do mesmo jeito como o fiz no dia anterior quando tentei ingressar e fui impedido de fazê-lo. Mas, desta vez, quem estava chegando era “um artista”. Perguntei-me qual seria o sentido de tudo isso que estava acontecendo nesse instante. O que teria aquela situação de interessante para essas pessoas que achavam estar presenciando uma “Performance” na qual um artista vestido de mendigo, “atuando como alguém que esteve excluído, ou que viveu na rua”, aparecia na frente deles, subia a escadaria, atravessava o salão para finalmente sumir numa outra escada lateral que levava ao segundo andar onde ficava a sala de imprensa. Diante dessa situação, me perguntei a respeito do que estava podendo quando era tratado como artista e do que podia quando podia-não ser tratado como tal. Arrisco-me a pensar que ao ser impedido de entrar no Museu, o “Artista esteve ausente” numa dupla ausência: a primeira delas desenvolveu-se no campo de saberes do funcionário de segurança que ao ver-me, não viu em mim ao artista convidado pela Bienal senão um morador de rua tentando ingressar no Museu. Mas, de maneira simultânea, deu-se também uma segunda ausência, aquela do corpo físico do artista que ao ser impedido de ingressar, fez permanecer a Performance por fora dos prédios ocupados pela Bienal. Paradoxalmente, a mesma instituição que me contratou para fazer uma Performance, foi aquela que me impediu de fazê-la dentro. O hegemonizante dispositivo da Arte acabou operando numa inclusão-exclusão que gerou esta dupla ausência, mantendo a Performance o tempo todo do lado de “fora”; nas margens. Como as tantas pessoas que, morando em situação de rua, são mantidas por fora do Público, tanto na hora de se debater o termo quanto na hora de agir com e na Arte. Situação tão diferente da acontecida no Memorial, onde o artista era esperado, e onde o “Artista esteve presente”. Ali, onde o Artista pode, eu pude pouca coisa além de ser fotografado ao ingressar sem ninguém se questionar pela minha presença, gerando sorrisos nos mesmos seguranças que no dia anterior me impediram de entrar. O que pode um corpo quando é habitado pelo status de Artista e o que pode um artista quando in-corpora outras experiências além das Artísticas? Para que(m) trabalhamos com arte? Cada vez mais estou achando necessário procurar outros públicos. Não na tentativa de torna-los espectadores, mas sim, co-afetadores. Cada vez mais está sendo necessário sair dos limites da Obra. Há um lugar a ser explorado, entre as margens e (peri)Feiras de Arte. |