Sede (texto em português)

Performance duracional de Santiago Cao apresentada como resultado da residência artística “PERPENDICULAR CASA E RUA”.
Sábado 10 de setembro de 2011.
Favela Santa Lúcia, Belo Horizonte, Brasil.
Registros Fotográficos: Fernando Costa, Maria Luiza Viana, Nathalie Mba Bikoro e Santiago Cao.
Texto traduzido para o português por Bruna P. Jung.
Gratidão para Pelé (Fabiano Valentino) por me acompanhar tão generosamente durante todo o processo de aproximação à favela e seus habitantes.

Duração aproximada: 3 horas.
(Para ver os registros fotográficos dessa Performance, fazer click na foto)

Registro Narrativo:


Este trabalho que denominei SEDE, não é nada mais que o resultado de um conjunto de experiências que vivi durante seis dias de minha residência. E digo que somente é o resultado, porque uma residência artística sempre é mais do que as obras produzidas nela. E precisamente a convivênciae os vínculos que se geram a raiz dela- o que realmente tem importância. Uma residência artística é antes de tudo um processo criativo, e em tanto obra duracional, toda ela deve ser compreendida como uma unidade. As partes não possuem maior importância que o todo. E é desde esta concepção de onde escrevo, pensando que SEDE -em tanto obra duracional- se iniciou ao primeiro dia de residência quando Patrícia Alencaruma jovem integrante da organização citada- nos guiou em um recorrido por alguns setores da favela. Ela tinha nascido ali, e ali se havia criado, quando a vida era distinta e as construções não poluíam uma ao lado da outra ocupando cada espaço de terreno possível. Mas isso era antes. Agora a terra em uma lembrança invisível. Por cada beco que transitávamos, somente víamos cimento baixo nossos pés. Patrícia nos contou, enquanto caminhávamos, que água encanada era uma conquista dos habitantes da favela Santa Lucia. Água que há não mais de 20 anos, as mulheres ainda tinham que buscar carregando latas em suas cabeças. As distancias eram largas e havia que subir e baixar pelo morro até uma nascente ou, com mais sorte, uma torneira. Estas torneiras vertiam água desde 6:30 até 8:30 da manha, motivo pelo qual, havendo água somente duas horas por dia, as filas se formavam desde a madrugada e com elas, as muitas disputas.  Mas isso era antes. Agora ninguém precisa sair para conseguir água. Basta com abrir as torneiras e tomar como se deseje. não é necessário ir ao encontro. E dentro de cada casa, graças à televisão e água encanada, esse encontro com o outro esta sendo dia a dia menos freqüente, e a distancia com a natureza, cada vez maior.

- Ali, onde está esse supermercado, se encontravam antigamente duas nascentes de água pura- nos contou Patrícia, apontando uma grande construção da rede ¨Super Nosso¨ localizado para além dos limites da favela. Outra conquista da civilização sobre a natureza. Outra vez a necessidade de consumir se posicionava por em frente. Ou seria melhor dizer por em cima?. Não podia entender como era possível que alguém pensara em construir um supermercado em cima de duas nascentesanulando as- e que muitos outros permitissem e inclusive aceitassem. E foi em este momento onde caminhado por esses becos e escutando a Patrícia falar de outros tempos¨- comecei a vislumbrar o que logo se converteria em meu projeto de intervenção. Recuperar a memória da água e todo o que implicava a sua procura. Os encontros a diário em essas filas esperando turno para encher sua lata e levar até sua casa. Os comprimentos, as conversas, as discussões, os conflitos. Ou seja, a socialização do povo em torno ao vital líquido.

- Aqui estava antigamente a torneira onde eu buscava água- nos conta Patrícia apontando uma esquina entre o cruzamento de dois becos.

- Onde?- perguntei.

- Aqui mesmo- disse. Somente que agora não esta mais. Agora em seu lugar uma casa.

Sua resposta guardava certa lógica funcional. Havendo água em cada lar, e sendo que hoje em dia não é água a principal necessidade se não que a construção de moradas é o importante, para que conservar ali uma torneira publica? Cada dia mais e mais pessoas precisam de um lugar onde viver. Os filhos crescem, formam famílias, e estas famílias precisam de um novo teto. Para que ocupar espaço com o passado se o presente surge de maneira tão evidente? Em neste instante me lembrei de uma frase do livro ¨O Pequeno Príncipe¨ de Antoine de Saint-Exupéry, onde o zorro compartilha a esse lindo personagem seu segredo. ¨O essencial é invisível aos olhos¨- disse. E compreendi que não era com os olhos que precisava ver essa torneira, mas com a memória. E se não a recuperamos, se não a mantemosviva, pouco a pouco vamos convertendo-nos em ¨cegos¨.

Os seguintes dias busquei distintas maneiras para aproximar-me a atualidade de essa favela e, dessa maneira, poder conhecer um pouco do passado da Favela Santa Lúcia. Me contaram que antigamente eram as mulheres as quecolocando se um pano enrolado para amenizar o peso- transportavam água carregando as latas sobre suas cabeças.

Essa informação me pareceu interessante para incorporar na ação. Partindo da Casa do Beco, percorreria as ruas e becos da favela carregando uma lata na cabeça, chamando às portas das casas que encontrara no caminho. A quem abrisse, diria “Tenho sede Me convida com dois copos de água?”. Um que beberia e o outro que pediria para as pessoas jogar dentro da lata. Buscando gerar conversação com as pessoas, buscaria conhecer historias dos tempos antigos e não tão antigos, para depois, pedindo informação do caminho a seguir, tentar chegar até a casa do senhor Guido. O Seu Guido, como as pessoas lhe diziam, vivia num outro extremo da favela, numa parte mais alta do morro, e por ele ser um dos primeiros habitantes do lugar, me disseram que conheceria grande quantidade de historias sobre o passado de essa comunidade. Não conhecia esta pessoa. Nem sequer sabia onde vivia. Somente sabia que sua casa estava no alto do morro, no outro extremo da favela. Salvo esse dado, nada mais sabia sobre ele, e mais nada queria saber para desse modo dar lugar à deriva e aos encontros e desvios que pudessem acontecer ao longo do percurso. E ao chegar – caso conseguir chegar – queria me encontrar com ele e lhe pedir que aceitara acompanhar-me até a bica onde ele buscava água em tempos passados. Queria lhe propor ir até esse lugar para verter o conteúdo da lata. Fazer um caminho inverso ao historicamente acontecido. Levar até a bica a água coletada, aportada pelos vizinhos, para oferecê-la, devolvendo um pouco do muito que ela deu para aquelas pessoas durante tanto tempo.

Três pessoasNathalie Mba Bikoro, Maria Luiza Viana e Fernando Costa- me seguiram a distancia, tomando registros fotográficos do que fosse acontecendo. Havia-lhes pedido que priorizassem a ação antes do que o registro, para que eu pudesse estabelecer relação com as pessoas sem que elas percebessem as câmeras. Pelé (um artista daquela favela, muito querido e respeitado pelo seu trabalho com as crianças e adolescentes do lugar) havia acedido a acompanhar-nos, velando pela segurança deles e seus pertences em caso de que surgira algum inconveniente no caminho. Isto último era algo que me preocupava, que sendo um recorrido à deriva, guiado somente pelas indicações que fosse recebendo das pessoas durante o percurso, cabia a possibilidade de acabar acidentalmente atravessando alguma zona de conflito entre distintos grupos de traficantes.

Comecei a caminhar e chamar às portas das casas pedindo dois copos de agua. Como me havia antecipado Pelé, ninguém se negou a dar-me água quando solicitava. Olhavam-me estranhados por conta de carregar sobre minha cabeça esse elemento de outra época, mas ao mesmo tempo, parecia ser a lata quem abria a porta ao dialogo. Logo de tomar a água que me convidavam lhes agradecia, e na tentativa de puxar conversa a respeito das épocas passadas, agregava frases tais como “está difícil conseguir água na rua, né?”, e lhes perguntava se sabiam onde antigamente havia alguma bica próxima daquele lugar. E desse modo, após conversar um pouco, pedia informação a respeito de como chegar até Seu Guido. Assim, fui chamando porta por porta e pouco a pouco a lata na cabeça foi se enchendo não somente de água, mas também de historias pessoais e coletivas.

Num momento do percorrido, Pelé me fez senhas para que me aproximasse até onde estavam eles. Informou-me que acabavam de avisar-lhe que a zona aonde me dirigia havia entrado em guerra e que não poderíamos passar por lá. Ele propus ir em outra direção. Perguntei-lhe se por onde ele indicava havia maneira depois de retornar até a casa de Seu Guido. Respondeu que não. Que não seria possível chegar porque essa casa se encontrava em meio da zona de conflito. Meditei uns minutos. Não queria deixar de chegar até esse lugar. Propus então despedir-nos, seguir caminho sozinho e correr eu mesmo o risco sem arriscar a quem me acompanhavam. Confiar em meu caminho e esperar que, com sorte, achassem que eu era louco e assim não se sentissem ameaçados pela minha presença. Pelé estava preocupado com minha resposta. Nesse momento uma caminhoneta passou ao nosso lado e parou. Ele conhecia aquela pessoa que conduzia. Perguntou-lhe sobre o estado da situação mais em cima. Respondeu que não havia visto nada. Parecia então ser somente um rumor. Podíamos seguir, mas não me sentia tranqüilo. Tinha um pouco de medo. Vi a dois homens parados um pouco mais adiante. Imaginei que estariam custodiando o setor ao que pertenciam. Ao invés de esquivar eles, decidi ir diretamente nessa direção e pergunta-lhes se por perto havia uma bica onde conseguir agua. Olharam-me estranhados. Responderam que não. Fiz alguma referencia com respeito ao calor que estava sentindo ao caminhar baixo esse sol. Comentei que estava carregando água sobre minha cabeça para levar até a casa de Seu Guido. Perguntei para eles se sabiam onde ele morava. Sua resposta foi amável. Parecia que a tensão havia diminuído um pouco. Continuei caminhando. Perguntei a outro grupo de pessoas um pouco mais adiante para onde continuar na procura do Seu Guido e me indicaram que a pessoa que estava procurando estava numa serralheria localizada um pouco mais adiante. Cheguei até o local. Sentia-me estranho. Nada concordava com o imaginado. Seu Guido não era tão velho como eu pensava e nem sequer tinha o cabelo branco. Era um homem que aparentava uns 70 anos de idade. O rodeavam três jovens que eram seus empregados.

- Bom diacumprimentei- O senhor é Seu Guido?

Olhou-me em silêncio e respondeu afirmativamente.

- Ahh que bom que o encontrei. Estou procurando pelo senhor desde que iniciei minha caminhada ao do morro.

Olhou-me com desconfiança. Não parecia se alegrar com a noticia de que aquele homem que carregava lata na cabeça estivera feliz de havê-lo encontrado. Comentei-lhe que estava procurando água para poder levar até a bica que, segundo me haviam dito, se encontrava próxima ao lugar onde estávamos. Alternando entre indicações a seus funcionários e chamados telefônicos, me disse que não existia nenhuma bica próxima.

Imaginei que tinha-me expressado mal e falei para ele de uma que me disseram que havia existido em tempos passados. Respondeu-me que a única que se encontrava relativamente próxima era aminaque estava baixando pelo morro em direção ate a esquerda, em uma quebrada. Mas agregou que não estava tão próxima como eu acreditava. Voltei a insistir. Perguntei se não havia outro e respondeu que sim, que mais em cima e em direção oposta podia encontrar. Mas que essa estava ainda mais distante que a anterior. Optei por mudar de estratégia e reformular minha pergunta

- Quando o senhor antigamente buscava água, em qual bica o fazia?

- No Bicãorespondeu.

- E ainda existe?perguntei emocionado

- Claro, é a mina que lhe disse ao inicio. A que se encontra descendo por aquele lado- e sinalizou até a esquerda da rua onde se encontrava seu negócio.

Não podia acreditar no que acabava de escutar. Essa bica que mencionou era uma das mais importantes da historia da favela. Ela, junto com Ladrão (localizada ao outro extremo do morro) haviam sido as únicas bicas que nunca se quedavam sem água. Por isso seus habitantes também lhe diziam a “mina”uma mina de água pura.

Sem sequer tentar propor lhe que me acompanhasse até ali, me despedi e comecei a percorrer o caminho que me indicou. Baixei por umas escadas que pareciam não ter fim. Abaixo, cada vez mais abaixo no morro, a civilização de cimento ia ficando para trás. Cada vez eram menos as casas e mais a terra que voltava a ser vivível. Parei-me em uma de estas moradas. Bati palmas chamando a seus moradores. Assomou-se uma mulher. Pedi que me convidasse com um copo de água. O lugar era muito humilde. Respondeu-me que tinha água da torneira. Disse-lhe que era justamente essa água que estava procurando. Veio ao meu encontro com o copo pedido. Bebi. Conversamos um pouco. Agora não perguntava por o paradeiro de Seu Guido. Agora era o Bicão que me impulsava a seguir caminho. Respondeu-me que ainda faltava um pouco para chegar. Havia que seguir descendo e logo, ao das escadas, dobrar até a esquerda. Pedi outro copo com água e repeti o ato de ajoelhar-me para que fosse ela quem volteasse o conteúdo dentro da lata. Despedi-me e segui caminho. Mais tarde, as pessoas que vinham atrás de mim me contariam que ao chegar a este lugar onde vivia a senhora, também bateram palmas e lhe pediram água. Eu- graças ao tecido e a lata - tinha a cabeça protegida do sol e havia bebido bastante água durante o trajeto. Ao contrario deles que com as cabeças expostas, e somente bebendo um refrigerante comprado em uma tenda, estavam sedentos. Contaram-me que a mulher lhes falou de um homem que acabava de passar por ali e que também lhes havia pedido um copo com água.

-          Carregava uma lata na cabeça- disse. Faz tempo que não vejo ninguém baixar com essas latas por esses lados - e agregou - antigamente a água brotava por todos lados aqui. E as pessoas baixavam a buscar. Mas, agora ninguém vem, ninguém se encontra.

Por minha parte eu seguia descendo as escadas tal e como me indicou esta senhora. Ao das mesmas dobrei a esquerda e 50 metros mais adiante a favela parecia terminar de se dissolver em meio ao mato. Somente estava, a maneira de vestígio, um pequeno arroio de água podre. Lixos da cidade que a rodeava. Segui meu caminho. Tudo ali era natureza. As plantas cresciam até onde alcançasse o olhar. Novamente a terra baixo de meus pés. Encontrei a dois meninos. Perguntei-lhes por a localização do Bicão. Mostraram-me dois tubos de plástico que saiam de uma pequena ladeira.

Como? Era esse os famoso Bicão? E compreendi nesse momento que a água, em tanto elemento básico para a vida humana, é um recurso extremamente apreciado nos lugares onde escasseia. E que, em épocas onde as torneiras vertiam água somente duas horas ao dia, uma mina de água que não habilitava recursos por horários era um verdadeiro luxo.

Pedi a esses meninos me fazer o favor de voltear o conteúdo da lata sobre meu corpo. Aceitaram sem perguntar o motivo. Tirei minha roupa ficando somente em cueca. Banharam-me com essa água carregada de historias e memórias. Me refresquei ao tempo que correndo sobre minha pele, a água regressava a seu ponto de origem.

Mais tarde, Fernando, um dos fotógrafos, faria um comentário que me chamou muito a atenção.

- Santiagodisse- Percebeste que sem saber, repetiste a mesma ação que realizam os meninos ao chegar ao Bicão?

Se haviam aproximado até ali outros dois meninos, e carregando em latas a água que saia da mina, verteram o conteúdo sobre seus corpos refrescando-se do caloroso dia. Vendo-lhes ali alegres, compreendi suas palavras.

Havendo proposto realizar um percorrido a deriva, criando uma cartografia subjetiva e afetiva em busca da memória de um povo que não cessa de transformar-se, sem sabê-lo, em essa deriva o caminho havia-me levado até esse lugar para repetir um ciclo que é cotidiano para quem ainda podem ter contato com a natureza. Procurar a água da fonte mesma para refrescar-se e acalmar a SEDE.  


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